Os saraus de Dona Telma

Uma notícia light para o fim de semana. Muito, muito saborosa! E mais, uma história da periferia. Eu adoooro uma periferia. Acompanhe meu devaneio: retire da periferia os córregos fedidos, o lixo não recolhido pelas prefeituras que a discriminam, os traficantes, seus “soldados” e cupinchas. O que sobra?... Gente como a gente.
Se você não concordar comigo sobre isto, fico muito triste. Significa que para você o princípio de igualdade não existe. Bem, nem sempre podemos concordar sobre tudo... Afinal, não somos iguais, rsrs.

Já esteve na periferia? Eu já, várias vezes, e me senti muito à vontade. Vai ver sou meio simplória, mesmo. Não tenho medo de bala perdida, ou melhor, se tiver que passar por uma dessas, paciência. Também poderia ter sido eu a vítima daquela marquise que caiu na Av. Paulista e matou uma mulher por lá. Ou eu poderia ter sido engolida pela “cratera” que se abriu no bairro de Pinheiros, onde trabalho. Não vou deixar de viver por medo disso ou daquilo. Mas também não vou deixar de refletir sobre isso ou aquilo.

A notícia que vou contar foi publicada no Jornal da Tarde de 8 de março por Maria Rehder, maria.rehder@grupoestado.com.br. Telma Evangelista, 39 anos, é costureira e mora numa casa de dois cômodos no Jardim Nordeste, zona leste, bem onde o Judas perdeu as botas. Todo sábado ela reúne mais de quinze crianças em sua casa, para encontros de leitura.

Já criei uma situação como esta em meu livro O Estuprador, baseado num fato real tão triste que precisei idealizar o desfecho. Uma personagem que inventei, Dona Luzia, junta alguns garotos da periferia onde mora para se encantarem com os livros, atlas e revistas que seu marido eletricista compra para os filhos estudarem. E é lógico que a cena imaginária não poderia ficar apenas nisso. Da cozinha simples de Dona Luzia saem também bolos perfumados e um café com leite que delicia a molecada faminta. Mas na história de Dona Telma não há nada mais interessante do que a leitura. Por isso é uma história muito mais densa e bonita do que a inventada por mim.

Dona Telma, mãe de cinco filhos, se apaixonou pela leitura aos doze anos, mas teve que abandonar a escola na 8ª série, por problemas financeiros. Décadas depois, sua filha Nayara, cursando a 5ª série na Emef Pe. Antonio Vieira, a mesma onde Telma estudara, também apaixonou-se pela leitura. Encantada com o caderno em que sua filha fazia as anotações sobre os textos lidos na classe, Telma foi convidada pela professora a participar de reuniões literárias na escola. Ela começou a freqüentar os encontros e tornou-se ajudante da professora. Isso a levou de volta aos bancos escolares e em 2006 Telma conseguiu concluir o Ensino Médio. Hoje ela é a incentivadora de leitura do bairro e fundou em sua casa o clubinho
Um brilho no olhar.
O grupo envolve crianças e adolescentes de todas as idades, que passam a ter contato com autores como Jorge Amado, Gonçalves Dias e Manuel Bandeira.Telma procura arrecadar na vizinhança folhas de sulfite usadas, em cujo verso as crianças do clubinho escrevem textos e poemas. Aquelas que ainda não sabem ler e escrever aproveitam as folhas para desenhar as histórias ali contadas.
No começo, ela enfrentou a resistência do marido, mas agora ele resolveu colaborar, fazendo banquinhos de madeira para acomodar melhor as crianças.
Entre as dificuldades, Telma destaca o machismo existente na sociedade brasileira.
Mas os sonhos fazem com que as mulheres superem os desafios. O meu é dar continuidade ao clubinho e quem sabe até prestar vestibular.
Para o clube de leitura, os planos de Telma são arrecadar livros e fazer reuniões itinerantes.
Já combinei com alguns pais que toparam receber o grupo para a realização de reuniões em suas casas. Também queremos fazer passeios a parques e museus.
Essa história com sabor de quero mais mostra como é fácil fazer uma criança se interessar pela leitura, ou melhor, pelo conhecimento. A leitura por si só periga nada acrescentar à bagagem intelectual e emocional de alguém, podendo inclusive fomentar...ódio pela leitura. O importante é o envolvimento de quem procura incentivar ou transmitir conhecimentos. Se não houver interesse, respeito e sintonia, nada de positivo acontece. A história de Dona Telma inclui uma professora sensível e uma escola aberta, aliás, uma das poucas que sobrevivem com dignidade a décadas de desmandos de uma política educacional sem compromisso com o aluno e a comunidade. Quisera eu que meus filhos pudessem contar orgulhosamente: foi aqui que estudei! Sua escola de Ensino Médio, que tinha o nome pomposo de Pe. Manoel da Nóbrega, foi sumariamente fechada pelo governo do Estado.

Enquanto a maioria das nossas escolas continua fazendo da leitura e da escrita um "bicho de sete cabeças”, as Telmas da vida e da periferia conseguem, mesmo sem recursos, difundir ao seu redor a paixão de conhecer o mundo.
Imagem: Bicho de Sete Cabeças, de José Aparecido Vaz

Comentários

Vera Vaz disse…
Eu moro em uma chácara na periferia! Sempre recusei a me trancar nos guetos da elite cheio de muros e de descriminação! Minha casa tem as portas abertas pras crianças brincarem nos jardins e jogar futebol e elas entram mesmo. Tenho por dia aqui pelo menos 30 crianças e adolescentes circulando livremente e pasmem: NUNCA TIVE NENHUM PROBLEMA COM ELAS! E é porisso que não acredito nos diagnósticos de crianças mal educadas, violentas e sem respeito que a escola diz receber. Acho que no fundo eles mesmo criam os monstros lá dentro daquele ambiente muito bem descrito pelo professor Leandro http://maiscontradicoes.blogspot.com/
Anônimo disse…
Obrigado Giulia!!
Fico muito lisonjeado, acredite. Mas era preciso seguir em frente. Estarei sempre por aqui, lendo e apoiando no que puder. Se um novo blog nascer, te avisarei!
Um grande abraço!!
Luciano